sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Livre


“Livre”- “Wild”, Canadá, 2014
Direção: Jean-Marc Vallée

O luto faz agir estranhamente. Freud dizia que, se não soubéssemos da perda que aquela pessoa sofreu, pensaríamos que ela enlouqueceu.
Assim, Cheryl foi atrás de drogas pesadas e sexo promíscuo quando sua mãe morreu. Queria se dopar para esquecer. Fazia tudo na vã tentativa de não pensar na dor que sentia.
Ela achava que não aguentaria viver sem ela que era seu norte. Aquela que protegia os filhos de um pai brutal. A que vivia cantando e amando as pequenas coisas da vida.
Não que muitas vezes ela não tivesse desdenhado de seus conselhos.
A verdade é que só realizamos o tamanho da perda quando é muito tarde.
Mas a mãe (Laura Dern, cativante) tinha semeado  bem a terra de sua filha (Reese Witherspoon, visceral). E ela se dá conta de que está se destruindo.
E aí começa a viagem. Ela cisma que vai fazer a trilha que vai do México à fronteira do Canadá. Compra o guia e lá vai Cheryl enfrentar os quase 1.700 quilometros da Pacific Crest Trail. Deserto, montanhas, planícies áridas, florestas, neve. Paisagens deslumbrantes (fotografia de Yves Bélanger).
Muitas vezes é penoso para o espectador acompanhar Cheryl. Mas o caminho nos arrasta com ela.
Percebemos o medo, a dor física, a rebeldia e a coragem de enfrentar o desafio. Mas encarando as dificuldades do percurso, ela encontra energias até então desconhecidas. Porque a viagem mais importante é a interna. É o conhecimento de si mesma que ela busca.
E, finalmente, ela pode se lembrar de tudo. E chorar.
De repente, estamos iluminados. O rosto dela mudou. Encontrou o que tanto buscava.
Reese Witherspoon está fantástica. Ela vive com todo o seu ser a história da verdadeira Cheryl Strayed, que perante a enormidade da tarefa a que se propôs, grita muito e com raiva, até que a paz é encontrada.
A presença distante de uma raposa que a acompanha, lembra a proteção da mãe. A natureza temida torna-se amiga e ela não está mais sozinha. Porque encontrou a mãe viva dentro dela mesma.
O diretor Jean-Marc Vallée, 51 anos, canadense, que dirigiu “Clube de Compras Dallas” no ano passado e ganhou três Oscars, leva o filme com talento, atento ao rosto expressivo de sua atriz, captando em “close” tudo que ela sente. Consegue mexer com o público do cinema.
Eu saí emocionada.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Uma Longa Viagem



“Uma Longa Viagem”- “The Railway Man”, Austrália, 2013
Direção: Jonathan Teplitzky

Ele é um prisioneiro do tempo.
Parece estar na Escócia, numa reunião de veteranos da Segunda Guerra nos anos 80 mas, alí, ele está só de corpo presente. A alma ainda está presa na Tailândia, onde aconteceu o que o marcou para sempre.
Eric Lomax (Colin Firth) é um traumatizado de guerra. Mas Patti (Nicole Kidman) não sabe disso quando o encontra no trem que a leva para conhecer as “Highlands” na Escócia. As belas paisagens verdes, sempre molhadas de chuva e enfeitadas de arco-iris são sua escolha para seus dias de férias.
Mas quem é que sabe qual será o próprio destino?
Aquele homem obcecado por trens e que tem mania de cronometrar tudo, tem algo melancólico e doentio em sua personalidade, mas ela não presta atenção e aceita casar-se com ele.
Aí, passado o primeiro encanto, vem o susto. E, apesar disso, o amor dela por ele procura um meio de livrá-lo do pesadelo que o persegue e sobre o qual se cala.
Enquanto ela decora a casinha deles frente ao mar, ele afunda na depressão. A imagem destorcida de Eric no vidro da janela é o perfeito reflexo do seu estado psicológico.
Ela procura ajudá-lo mas ele se fecha e o casamento parece fadado a um triste fim. Porém Patti não desiste e o coloca frente à frente daquilo que ele não quer ver mas que não o deixa viver. Para isso, ela conta com a ajuda do também veterano Finlay (Stellan Skarsgad) que sabia o que tinha acontecido com Eric.
Baseado em um livro escrito pelo verdadeiro Eric Lomax, a história do filme é real. E mostra, com crueza, o que foi a guerra para os britânicos capturados pelos japoneses.
Aliás, qualquer guerra é cruel. Numa situação onde a morte ronda, os homens podem praticar as maiores barbaridades para dominar o inimigo.
Mas, se a vida continua, a guerra não termina fácilmente. Porque quem a viveu, não pode esquecer os traumas que marcaram para sempre os que se enfrentaram com ódio e medo.
Será possível perdoar a quem nos fez tanto mal?
Esta é a pergunta do filme “Uma Longa Viagem”, dirigido por Jonathan Teplitzky, que não chega a ser memorável. A não ser pela atuação sempre convincente de Colin Firth, que mostra a dor e a prisão onde ainda vivia seu personagem, anos depois do acontecido.
Um filme tradicional, sem grandes novidades mas que conta uma boa história verdadeira.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

As Duas Faces de Janeiro


“As Duas Faces de Janeiro”- “The Two Faces of January”, Estados Unidos, 2014
Direção: Hossein  Amini

Na mitologia greco-romana, Janus era o deus das duas faces: uma que olhava o passado, outra mirava o futuro. Por isso chamaram  janeiro o primeiro mês do ano.
Por uma questão de vivência, a lição que o passado nos trouxe, podemos empregá-la no futuro com sucesso. Janus teria esse papel na vida das pessoas.
Aqui, na novela de Patricia Highsmith, adaptada para o cinema pelo diretor iraniano Hossein Amini ,52 anos, fazendo seu primeiro longa, as duas faces mostram esse e também outro lado complicado  da natureza humana, a dissimulação. Ter “duas caras”, como dizemos.
Todos os personagens escondem algo nesse, aparentemente, despreocupado cenário de férias de um casal americano em Atenas.
Colette e Chester (Kirsten Dunst, bela e Viggo Mortensen, ótimo), felizes e elegantes, passeiam entre as ruinas da Acrópole. Como estamos nos anos 60 e eles são ricos e sofisticados, ele está de terno claro e chapéu panamá, ela com um vestido leve, de chapéu de palha e luvas.
Não parecem temer o futuro, nem olhar com culpa para o passado. Mas as aparências enganam.
Alíás, essa é a frase que vai dizer um terceiro personagem dessa trama, Rydal (Oscar Isaac), um jovem americano que é guia turístico, disfarce que escolheu para encobrir um drama pessoal.
Quando Rydal se aproxima do casal, encantado com os dois, olhares são trocados por detrás de óculos escuros e a fumaça de cigarros. Existe um clima de sedução e de mistério no ar.
Uma trama edípica se anuncia entre aqueles três seres, tão longe de casa e, não por acaso, na Grécia, lugar das tragédias humanas vividas na antiguidade por deuses.
Quando o trio viaja para as ilhas gregas, os dados são lançados e eles não irão libertar-se uns dos outros, nessa rede de fascinação que eles mesmos teceram e que os envolve perigosamente.
Kirsten Dunst, como sempre boa atriz, com sua beleza frágil, oscila entre a menina inocente e a mulher fatal. Viggo Mortensen, másculo e rude, por detrás de uma aparência refinada, é o dono da cena. E Oscar Isaac, jovem carente de afeto, brigado com o pai, faz com graça juvenil o Édipo, encantado com a mãe e fascinado pelo pai que é dono dela. Os dois desejam Colette, cada um à sua maneira. Parecem unidos por um clima tenso que paira entre eles.
O ambiente de época é recriado com requinte pela direção de arte e as paisagens nas ilhas de ruazinhas estreitas, bares no porto e bazares, são um dos atrativos desse filme.
“As Duas Faces de Janeiro” é um suspense inteligente, com uma carga psicológica marcante. E sugere que a vida é breve, está sempre por um fio e depende de nós mesmos para mostrar-se doce ou cruel.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Exodo: Deuses e Reis



“Exodo: Deuses e Reis”- “Exodus: Gods and Kings”, Estados Unidos,  2014
Direção: Ridley Scott

Quem não conhece essa história milenar?
Moisés, que foi salvo da morte certa, ainda bebê, porque foi colocado num cesto no Rio Nilo para escapar dos soldados do faraó, foi adotado pela princesa que o encontrou. Não sabendo sobre sua origem, fez dele um Príncipe do Egito. Ele é um dos personagens mais importantes da religião judáica e está presente na Bíblia dos cristãos e no Corão dos muçulmanos.
Cecil B. de Mille, em 1956, fez Charlston Heston ser o Moisés que falava com Deus, uma coluna de fogo, no filme “Os Dez Mandamentos”. Houve também uma animação da DreamWorks, “O Príncipe do Egito”.
Mas nunca se viu um Moisés como o de Ridley Scott, na pele de Christian Bale. O diretor do “cult” “Blade Runner” 1982, “Alien” 1979, “Gladiador” 2000, “Prometheus” 2012, fez de Moisés um príncipe, um exilado, um homem em busca de si mesmo e, por fim, um revolucionário que tira seu povo da escravidão no Egito, liderando-o em busca da Terra Prometida.
Tudo isso contado com tal grandiosidade e beleza de imagens 3D, que nos perdemos na procura de detalhes, quando a imensidão do que é mostrado na tela não dá para nossa visão abarcar. É de embasbacar. Tudo é superlativo.
Quem conhece o Egito nunca sonhou em ver aquelas ruinas reconstituídas com tamanha glória. Os palácios refulgem, as colunas imensas sustentam edifícios de sonho. A decoração é extasiante nos mínimos detalhes, sob uma luz definitiva.
As passagens mais marcantes como as pragas e a travessia do Mar Vermelho são contadas em cenas arrepiantes que são imagens que falam. Não são necessárias palavras para entender o que se passa.
Os atores foram bem escolhidos: John Turturro como o faraó, Joel Edgerton seu filho Ramsés, Sigourney Weaver faz a irmã do faraó e a bela indiana Golshifteh Farahani (de “A Pedra da Paciência”) é a rainha.
Mas ninguém faz sombra a Christian Bale, que construiu uma personalidade carismática e muito humana para Moisés.
Um ponto alto é a originalidade com que Ridley Scott tratou a figura do Deus dos hebreus. Um menino (o britânico Isaac Andrews, de 11 anos) encantador, voluntarioso e muitas vezes doce. Tão próximo de Moisés que diríamos ser a parte dele identificada com a missão de salvar seu povo e ser digno de sua origem, antes ignorada por ele e resgatada com honra.
“Exodo: Deuses e Reis” é um filme épico com um quê de contemporâneo.


quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Mommy


“Mommy”- Idem, Canadá, 2014
Direção: Xavier Dolan

E se, por lei, os pais pudessem internar seus filhos problemáticos em instituições, sem precisar de indicação médica?
Durante as cenas de “Mommy”, o último filme de Xavier Dolan, vamos ver uma relação mãe-filho com tal carga emotiva e explosiva, que ficamos com um sentimento de irritação e medo, tudo ao mesmo tempo. É uma experiência sufocante, asfixiante mesmo, sem saída que, ao mesmo tempo, consegue ser terna e emocionante.
Diane Deprès (Anne Dorval), a mãe e Steve (Antoine-Olivier Pilon), o filho com distúrbio de atenção, hiperativo e com a agressividade descontrolada, vão nos atormentar e enternecer durante todo o filme.
Ela é jornalista, perdeu o emprego, é viúva ainda jovem e sua figura sexy chega a ser quase vulgar mas com algo de atraente e original.
Steve tem 15 anos, olhos azuis e um jeito de bebê louro fofo mas que pode virar um demônio num piscar de olhos, quando as coisas não acontecem como ele quer.
Ele foi expulso da escola especial onde estudava porque causou um incêndio e feriu um colega. A mãe, de modo muito parecido com o filho, com onipotência, diz para a diretora que vai tomar conta dele sozinha, com amor.
“- Pensou na lei atual? Como um último recurso? Seu amor não pode curar isso que seu filho tem”, responde a diretora com receio.
E vemos a mãe enfrentar seu carma com coragem. Mas como ensinar o que não se sabe? Diane tenta e se esforça mas Steve é uma tarefa acima de suas forças. Ele é uma bomba-relógio.
A vizinha da frente (Suzanne Clément) é como que um milagre acontecendo na vida daqueles dois. Ela é uma tábua de salvação para Steve e Diane e eles são a força de vida que falta a ela. Por um tempo, os três vão fazer bem uns aos outros.
Mas como milagres não acontecem todo dia, Diane sonha com um final feliz para ela e Steve e se depara com o impossível.
“Mommy” é como o colarzinho que Steve rouba no supermercado e dá para a mãe como prova de amor. O filme nos coloca frente a uma situação-limite onde o certo e o errado não são evidentes e por isso o coração tem que escolher o menos pior.
Xavier Dolan, 25 anos e cinco filmes surpreendentes, ganhou o prêmio do júri do Festival de Cannes 2014 com “Mommy”, um trabalho extraordinário de atores e diretor, que também é roteirista, produtor, editor, escolhe os figurinos e músicas para o seu filme.
Um geniozinho.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Homens, Mulheres e Filhos


“Homens, Mulheres e Filhos”- “Men, Women and Children”, Estados Unidos 2014

Uma sonda no espaço flutua na tela.
A voz de Emma Thompson conta que, em 1977, a Voyager 1 deixou nosso planeta para explorar e fotografar o universo. Levou dentro dela informações sobre o que é um ser humano,  para que os possíveis extra-terrestres, que a encontrem um dia, possam ter uma ideia de como somos e como é a Terra. Foram escolhidos sons do mar, do vento, os batimentos do nosso coração, trinados da voz humana cantando a ária da Rainha da Noite da “Flauta Mágica” de Mozart e o som de um beijo, entre outras informações.
Em 14 de fevereiro de 1990, A NASA mandou um sinal para a Voyager virar-se e fotografar os planetas que havia ultrapassado. E nós aparecemos como um pequeno e pálido ponto azul, perdido na imensidão do universo, recebendo luz fraca do Sol mas ainda visível.
O diretor canadense Jason Reitman, 37 anos, de “Juno”2007 e “Sem Escalas”2009, faz um “zoom” e voltamos para a Terra.
Parece que a intenção dele é vasculhar o estado de coisas aqui na Terra, mais precisamente, numa cidade pequena dos Estados Unidos, e fazer uma foto que nos mostre agora, na segunda década do século XXI.
Vamos seguir a vida de estudantes de uma escola secundária. E ver como andam as relações humanas nessa nossa época de redes sociais e vida virtual.
Estão todo clicando em seus telefones celulares, tablets e computadores. Na tela, aparecem eles com suas mensagens.
Somos levados a seguir Hannah (Olivia Crocichia), que quer virar celebridade, ajudada pela mãe (Judy Greer) que a fotografa em poses sedutoras e pouca roupa. Outra, bem magrinha (Elena Kampouris), só pensa em não comer e informa-se em sites que estimulam a anorexia. Mas quer deixar de ser virgem e não esconde bem sua índole romântica.
Travis Trope faz um garoto cuja vida sexual se resume à masturbação com o auxílio de uma garota da internet. Já seus pais (Adam Sandler e Rosemary DeWitt) que não transam, entram em salas de “chat” para encontrar parceiros secretos.
Brandy (Kaitlyn Dever) é vigiada e gravada pela mãe invasiva (Jennifer Garner), que quase transforma o namoro saudável dela com Tim (Ansel Elgart) em tragédia.
Em todas as histórias, conflitos, angústias e a vontade de amar e ser amado.
Ou seja, a humanidade continua a mesma de sempre, só que agora usa tecnologia para se relacionar ou evitar o outro. Na nossa essência, não mudamos.
Continuamos sendo aqueles dos sons viajando no espaço levados pela Voyager, habitantes de um pequeno e pálido ponto azul, perdido na imensidão do universo.


domingo, 7 de dezembro de 2014

Michael Kohlhaas - Justiça e Honra


“Michael Kohlhaas – Justiça e Honra”- “Michael Kolhlhaas”, França, 2013
Direção: Arnaud de Pallières

É raro vermos um filme como esse.
Adaptação de um romance escrito em 1810 pelo alemão Heinrich Von Kleist (1777-1811), lançado no Brasil pela Civilização Brasileira, faz o público viver o ambiente do século XVI na Europa.
Quase sentimos o rude toque das roupas pesadas em nossa pele, o vento no rosto ao galopar pelas colinas em meio à neblina, o cheiro dos cavalos nas estrebarias, o calor do fogo das tochas e flechas incendiárias, o medo e o destemor que habitam  o ser humano.
O romance colocava a ação na Alemanha, dividida em vários estados entregues à nobreza. O filme faz a história deslocar-se para a França, na região do Languedoc, sob a princesa Marguerite de Angoulême, Rainha de Navarra, irmã do rei de França (Roxane Duran), uma das primeiras mulheres da literatura francesa.
Michael Kohlhaas, um comerciante de cavalos, leva uma tropa para a feira, quando é confrontado por um servo de um barão, que exige que ele pague pedágio pela passagem por aquelas terras.
Indignado, porque sabe que a cobrança é ilegal, mas cortês, Kohlhaas deixa dois cavalos negros magníficos como garantia e um de seus servos para cuidar deles e sai em busca dos papéis exigidos.
Quando volta, seus cavalos foram tão maltratados, assim como seu servo, que Kohlhaas fica furioso.
Homem de princípios rígidos, ele exige reparação. E aí começa uma disputa judicial complicada, porque o barão, homem influente, conduz o processo a seu favor.
A mulher de Kohlhaas, Judith, bela e apaixonada pelo atraente homem que a desposou, vai interceder por ele junto à princesa mas é também tão maltratada pelos soldados, que morre ao voltar para casa. Sua filha pequena Lisbeth (Mélusine Mayance) e o pai e marido amoroso, a enterram com seu vestido novo, aos pés da casa de pedra onde habitam.
Revoltado, Kohlhaas resolve fazer justiça com as próprias mãos. Reune um exército informal de camponeses, comerciantes e homens sem posses e lidera uma guerra contra a cidade da princesa. Sua sede de vingança é seu guia.
Há um encontro de Kohlhaas (que lê a Biblia traduzida) com Lutero, onde o dissidente da Igreja Católica primeiro o condena, depois o apoia.
O filme conta uma história sobre o conflito entre o que um homem de princípios sente em seu interior, quando se vê injustiçado e o que prevê a lei dos homens.
Mads Mikkelsen, o magnífico ator dinamarquês, com sua presença carismática, não poderia ser um melhor Michael Kohlhaas.
O diretor, Arnaud de Pallières, 53 anos, assina um filme de uma beleza incrível, com muitos “closes” fechados sobre os rostos dos personagens, que fazem o espectador ficar muito próximo do que se passa no íntimo deles, além de uma reconstituição de época deslumbrante, sob uma luz solar intensa e um escuro sombrio, que refletem com esplendor, a ambiguidade do tema.
Raro mesmo.

sábado, 6 de dezembro de 2014

À Procura


“À Procura”- “The Captive”, Canadá, 2014
Direção: Atom Egoyan

Pedofilia é tabu. Assunto difícil de ser tratado num filme, sem que haja um apelo quase irresistível para mostrar imagens que chocam. Não é o caso de Atom Egoyan, diretor que consegue falar de inocência roubada com delicadeza. Em “À Procura”, há inclusive uma tentativa sincera de alertar para o problema, sem tapar o sol com a peneira.
Aquele pai desesperado (Ryan Reinolds), que deixou a filha no carro, no fim de um dia gelado nas montanhas canadenses, para vê-la desaparecer sem deixar vestígio, causa pena. Ele foi comprar uma torta para o jantar, depois de pegar Cassandra no ensaio da dupla de patinação com o  amiguinho Albert, quando o inesperado drama começa.
E pior. Ninguém acredita nele. A mãe de Cass (Mireille Enos) culpa o marido de ter abandonado a filha e a polícia desconfia dele. Seu negócio vai mal, ele está falido, não pode ter vendido a filha para gente inescrupulosa?
Participamos do calvário do pai porque somos os únicos a ver Cassandra (Alexia Fast) nas mãos de uma rede bem organizada de pedófilos na internet, que tem entre seus membros, pessoas importantes da sociedade local.
Em “flashbacks”o diretor conta a história de Cassandra, 10 anos de idade, uma bela menina loura que se transforma, 10 anos depois, em uma mocinha sem brilho, tristonha, que faz tudo que seu dono (Kevin Durand) manda fazer. Como já não interessa sexualmente, Cassandra desempenha o papel de aliciadora de novas crianças pela internet.
Vemos na tela, menos em Cassandra e mais em outra moça que trabalha para a rede de pedofilia, o que tecnicamente é conhecido como “Síndrome de Estocolmo” e que tem esse nome desde 1973, quando sequestraram funcionários de um banco na Suécia. Mantidos presos no cofre, enquanto os sequestradores conversavam com a polícia, os sequestrados passaram a mostrar simpatia por seus algozes, rejeitando inclusive o auxílio do governo,  mostrando-se mesmo ligados emocionalmente aos que os aprisionavam, defendendo-os até.
A hipótese mais aceita para esse tipo de comportamento é a entrada em cena de um mecanismo de defesa, estudado pela psicanálise, conhecido como “identificação com o agressor”. O trauma da vítima transforma-se em uma ligação emocional com o seu algoz, numa tentativa de eliminar o perigo. Colocada numa situação de total impotência, a vítima tende a transformar seu agressor na figura de uma mãe poderosa, com direito à vida e à morte, mas que poupa sua vítima. O temor extremo transforma-se em uma espécie de laço amoroso.
Em seu filme, Egoyan trata todos os personagens com a mesma dureza. Ninguém escapa. Todos ficam presos na história de Cassandra e não vivem suas vidas. O pai, a mãe e até a própria polícia, na pele da investigadora Nicole Dunlop (Rosario Dawson) e do detetive Jeff ( Scott Speedman).
Atom Egoyan, 54 anos, filho de pais armênios, nascido no Egito, vivendo no Canadá, é o diretor do brilhante “O Doce Amanhã – The Sweet Here and After”1998. Em “À Procura” não mostra o mesmo desempenho mas consegue realizar um filme interessante que faz pensar nos perigos do progresso, quando novas tecnologias são usadas por gente do mal.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Os Amigos


“Os Amigos”, Brasil, 2014
Direção: Lina Chamie

Aquele homem tem algo que o faz melancólico, olhando a paisagem cinza da cidade que amanhece. Seus gestos são lentos ao fazer café, pegar o jornal, receber a velha empregada que chega.
“- Dona Julieta, vou ter que ir ao enterro do Juliano.”
“- Seu amigo de infância? Que triste... Você fala tanto dele, Theo. Que pena morrer assim...Tão jovem...”
“- Morrer nunca é bom...” diz Theo.
“- Mas é a vida, né?”responde ela.
Este é o tema do filme “Os Amigos” de Lina Chamie, roteirista e diretora.
Vamos seguir Theo (Marco Ricca), uns 40 e poucos anos, arquiteto, em um dia de sua vida. O dia em que o amigo Juliano morreu.
Velório. Cemitério. Palavras ditas e que ficam com ele:
“- Transformemos suas lembranças em vida.”
Theo aproxima-se da viúva e do filho do amigo, para se despedir:
“- Não sabia que o que ele tinha era tão grave...”
“- A gente nunca se prepara o suficiente para a morte... Tem uns livros do Juliano que eu queria te dar. Passa lá em casa?”
E Theo se vai. Mas não parece muito envolvido com sua própria vida. O luto pelo amigo traz de volta a infância dos dois. As brincadeiras, as brigas e as pazes, o pai violento do amigo, o irmão dele expulso de casa. Cenas que fazia tempo que Theo não revia.
Mas as lembranças de Juliano vão mantê-lo vivo dentro de Theo, o amigo que se afastara do outro na idade adulta mas com quem repartira momentos íntimos, quando o mundo ainda era a escola, a casa dele, a rua, a casa do amigo.
Theo se tranca no banheiro e chora. Vê o amigo no espelho, que sorri para ele.
E Theo se lembra da amiga Majú (Dira Paes) que está no zoológico com as filhas. Imagens de vida , natureza e luz invadem a tela.
A morte é natural. Tudo que vive morre. Só as lembranças não morrem. E o luto leva Theo para uma viagem pelo seu mundo interior.
Crianças, como um coro grego, contam a história de Ulisses e sua viagem. A “Suite Peer Gynt” de Grieg toca  em certos momentos. E tudo isso lembra a vida de heróis que empreendem viagens mágicas.
Hoje é dia de Theo viajar para dentro de si mesmo e reencontrar os heróis de sua infância.
Não é à toa que ele compra um Hércules para o menino que faz aniversário mas que acaba dando para o que perdeu o pai. Para protegê-lo.
A amiga levanta a moral de Theo. Ela também está sózinha. E a amizade aparece aqui, no presente da vida de Theo, como um sentimento forte que socorre, que sustenta em horas difíceis.
Poético e delicado, “Os Amigos” é um filme especial, para pessoas que gostam de um cinema que fala de sentimentos. 
 

sábado, 29 de novembro de 2014

Elsa & Fred



“Elsa & Fred”- Idem, Estados Unidos, 2014
Direção: Michael Radford

Mas já não vimos esse filme?
Já. Em 2005, Marcos Carnevale dirigiu a co-produção Espanha e Argentina, que fez sucesso de público e crítica, com China Zorrilla fazendo Elsa e Manuel Alexandre como Fred. O filme recebeu aqui o título “Elsa & Fred – Um Amor de Paixão”.
Nove anos depois, a mesma história é refilmada pelo inglês Michael Radford (de “O Carteiro e o Poeta – Il Postino”1994), com uma dupla conhecida: Shirley MacLaine, 80 anos e Christopher Plummer, quase 85. Os dois oscarizados. Ela por “Laços de Ternura”1983, ele por Beginners – Toda Forma de Amor”2010.
Mesmo sendo a mesma história, do viúvo rabugento que muda para o apartamento vizinho de Elsa, uma senhora excêntrica, fã de “La Dolce Vita” que Fellini dirigiu em 1959, o filme americano tem seu charme.
Só de fruir do privilégio de ver esses dois “monstros sagrados” atuando juntos, já vale a ida ao cinema.
Ela, que já foi “Irma La Douce”em 1963, empresta a Elsa uma sedução e encanto próprios, o que faz a plateia rir e se deliciar com as tiradas engraçadas da sua personagem, com toques que só Shirley MacLaine poderia dar.
Ele, apesar da extensa lista de filmes para o cinema e TV e peças na Broadway, talvez seja mais conhecido por seu papel em “Noviça Rebelde – Sound of Music”1965, o Capitão Von Trapp, pai dos meninos cantores que se casa com Julie Andrews, a governante. Com aquela voz doce e característica, faz com talento a passagem do velho pessimista para o homem gentil que aprende a apreciar a vida com Elsa.
A cena na Fontana di Trevi, em Roma, que no filme de Fellini mostrava Anita Eckberg sendo olhada em extase por Marcello Mastroianni, é repetida em “Elsa & Fred” com tanta doçura e graça, que a mudança da cor para o preto e branco da cena original, só percebemos um pouquinho depois. Como Marcello, só temos olhos para Shirley MacLaine, no vestido preto decotado chamando Fred para perto dela.
O elenco com bons atores como Marcia Gay Harden que faz a filha prepotente e George Segal como o médico amigo de Fred, ajudam a criar diálogos e situações que dão ritmo ao filme.
O amor aos 80 anos, já não causa tanto alarde como causou em 2005 com o primeiro filme. As novas plateias, que talvez nem conheçam a primeira versão latina, poderão emocionar-se com “Elsa & Fred” e perceber que a vida pode trazer boas surpresas até o fim.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Sétimo


“Sétimo”- “Septimus”, Espanha, Argentina, 2013
Direção: Patxi Amezcua

Na manhã e do alto, vê-se uma cidade com prédios, um parque, trânsito. Quando a câmara se aproxima de um carro, identificamos Ricardo Darín, que faz um advogado portenho. Conversa no celular com seu escritório, flerta galante com a secretária e ficamos sabendo que ele é separado.
Nesse dia, o escritório onde trabalha vai ter uma audiência num caso importante, que envolve pessoas endinheiradas mas não de boa fama. Precisam dele lá.
“- Todos tem direito à defesa”, responde ele à ex-esposa (Belén Rueda), que o questiona.
Todo dia, antes do trabalho, ele vai buscar os filhos na casa da ex e os leva para a escola.
Pela conversa dos dois, enquanto esperam as crianças se aprontarem, deduzimos que foi ela que quis a separação e que quer voltar para a Espanha, onde mora sua família.
Seu pai está doente e precisa dela.
Mas Sebastián não quer separar-se dos filhos e não concorda em assinar os papéis necessários para tal viagem.
As crianças, um menino e uma menina chegam e lá se vão correndo pelas escadas do prédio, enquanto o pai desce de elevador. É um jogo deles. Apostam para ver quem chega primeiro lá embaixo, na saída para a rua.
E começa um angustiante pesadelo para Sebastián. Quando ele desce, não encontra os filhos. As crianças desapareceram.
Ele sobe e desce as escadas à procura delas, chamando alto, pois pensa que estão brincando, mas não é brincadeira. Sumiram.
O telefone celular para emergências, que o filho tem na mochila, está desligado. O zelador do prédio, que estava na portaria, não viu as crianças passarem.
De agora em diante, todos são suspeitos para Sebastián.
O diretor catalão Patxi Amezcua, co-autor do roteiro, realiza um bom trabalho na criação do suspense. Atiça a curiosidade do espectador, que se envolve com o mistério. Afinal, o que pode ter acontecido com as crianças entre o sétimo andar de onde sairam correndo e o momento em que não foram mais vistas?
Ricardo Darín é daquele tipo de ator que preenche a tela. Seu pai amoroso, que ele coloca na frente do advogado, comove. As expressões faciais, o nervosismo, a impulsividade frente a cada novo suspeito, tudo ele desempenha com perfeição.
Contar com Ricardo Darín é um trunfo para o diretor, mesmo que haja falhas no roteiro.
“Sétimo” é um suspense bem feito, com um ator que é um monstro na interpretação de qualquer papel.
É bom entretenimento.

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Boa Sorte




“Boa Sorte”- Brasil, 2014
Direção: Carolina Jabor

Toda Julieta tem o seu Romeu. Quase todo mundo conhece a história trágica desses dois na famosa peça de Shakespeare. É o primeiro amor, sendo vivido com beleza e drama.
Mas em “Boa Sorte”, a história de uma Julieta e seu Romeu, tem detalhes diferentes.
Nossa Julieta tem trinta anos e sabe que vai morrer logo. Está envenenada por um virus que não consegue combater. Os remédios não fazem bem a seu corpo depauperado e belo.
Romeu aqui tem a idade certa, 17 anos e ela, apesar de mais velha do que ele, vai ser o seu primeiro e grande amor.
Tudo se passa numa clínica psiquiátrica, onde ela está internada por causa de sua dependência de drogas.
Os pais de João, o Romeu de nossa história, preocupados com sua depressão, que ele combate misturando Frontal e Fanta Laranja, resolvem interná-lo na mesma clínica em que a avó excêntrica de Judite (Fernanda Montenegro, sempre o máximo), colocou a nossa Julieta.
Aliás as drogas, leves ou pesadas, são presença na vida de todos os personagens de “Boa Sorte”. Essa é uma pergunta que o filme faz: por que tanto remédio?
Deborah Secco teve que emagrecer onze quilos para ser Judite. Sua beleza ganhou ângulos, seu corpo perdeu curvas mas a sedução continua intacta, realçada pelo talento da atriz que se entrega com amor à personagem.
A câmara mostra o corpo dela sempre que pode e, mesmo magrinha e abatida pela doença, Judite resplandece com Deborah, com seu jeito de menina sexy que nunca perde a vontade de brincar e rir.
Já seu parceiro João (João Pedro Zappa), perdidamente apaixonado, vai viver meses, maravilhado, naquela clínica, paraiso de onde não quer sair, por causa dela.
A diretora Carolina Jabor, 39 anos, casada com Guel Arraes, também diretor e filha de Arnaldo Jabor, em seu primeiro longa de ficção, nos envolve com essa história de amor.
Com delicadeza, ela vai mostrando as cenas que, muitas vêzes, parecem sonhos. Amorosos mas também divertidos. Seus personagens não são amantes trágicos.
O roteiro de Jorge e Pedro Furtado é leve e jovem, apesar do tema dramático. Baseia-se num conto de Jorge Furtado “Frontal com Fanta”.
E as ilustrações de Rita Wainer são deliciosas.
“Boa Sorte” comove na medida certa. Não tem tristeza de mais nem de menos.
Vemos na tela a vida, com os elementos que não devem faltar para ela ter sentido: amor e sofrimento que leva a crescimento.
E saímos do cinema pensando nisso, ao som de Caetano Veloso, sempre um precioso detalhe a mais.